«Os meus amigos da Académica que me desculpem mas quero que vença a Sanjoanense» – Flávio das Neves

Flávio das Neves é figura de proa do futebol português. Com uma carreira recheada e dez anos de Primeira Liga, o principal escalão da modalidade no nosso país, o antigo defesa conta com passagens por Arrifanense, Valecambrense, Vitória Guimarães, Benfica, Vitória Setúbal e Espinho, clubes a que se juntam Sanjoanense e Académica, que esta semana se defrontam.

No regresso ao passado, a viagem é, portanto, marcada por nostalgia máxima e as recordações não demoram a ser partilhadas. Se foi em São João da Madeira que se impôs e assumiu o seu potencial, em Coimbra Flávio viveu três dos melhores anos da carreira, com experiências e ensinamentos que jamais esquecerá.

Com muita afetividade, o agora treinador relembra os tempos passados naqueles que, como diz, são dois dos seus grandes amores, recuando no tempo para lembrar peripécias e momentos caricatos e antevendo o futuro, que traz já no horizonte um jogo que espera bonito e histórico.

Com muita amoção à mistura, Flávio garante que marcará presença no Conde Dias Garcia e, apesar do forte sentimento que nutre pelos dois clubes, não mostra hesitação na hora do apoio: o coração vai bater pela Sanjoanense e os nervos, assegura, vão ser muitos.

Flávio, fez parte dos quadros da Sanjoanense como jogador e, posteriormente, como treinador. Antes de mais, o que é que o clube representa para si?

A Sanjoanense é o meu clube de coração, aquele que me transportou e me deu possibilidade de atuar a um nível mais alto. Foram dez anos de Primeira Liga… Apesar de ter começado nas camadas jovens do Arrifanense, foi na Sanjoanense que me projetei para o futebol e, mais tarde, foi neste clube que terminei a carreira e assumi um cargo de treinador, na equipa de juniores, que fez uma campanha sem paralelo nos últimos 30 anos… Passados alguns anos acabei por assumir a equipa sénior e, curiosamente, a Sanjoanense foi, até ao momento, o único clube de onde fui despedido. Para além disso, o meu filho tem também uma forte ligação ao clube, fazendo parte, está época, da equipa sénior.

As ligações são muitas e fazem com que a Sanjoanense seja, sem dúvida alguma, o meu clube, aquele que amo!

Qual foi o melhor momento que viveu ao serviço da Sanjoanense?

Foram tantos… Felizmente foram muitos. Lembro-me da subida de divisão, da Terceira para a Segunda, quando tinha 20 anos, numa época em que acabámos por perder a final do campeonato em Leiria, contra o Vasco da Gama de Sines. No ano seguinte, na Segunda Divisão Nacional, numa altura em que existiam duas zonas, a Norte e a Sul, tínhamos uma equipa fantástica, com jogadores de 20 e 21 anos, mas acabámos por falhar a subida de divisão a duas jornadas do fim, quando podíamos ter entrado para a história do clube com a subida à Primeira Liga. Também nesse ano, num jogo contra o Leixões, acabei por ser observado pelo Sr. José Maria Pedroto e, no final, recebi uma chamada com um convite para me transferir para o Vitória Guimarães… Foram muitos momentos bons. Mais tarde voltei e, como disse antes, assumi a equipa de juniores, que tinha grandes jogadores e fez uma campanha espetacular, ao garantir o 5º lugar a nível nacional, atrás SL Benfica, FC Porto, Sporting CP e Boavista… Foram mesmo muitos os momentos espetaculares que passei na Sanjoanense. Momentos que me ajudaram a crescer e fizeram de mim o atleta em que me tornei.

Como se percebe a Sanjoanense é parte muito ativa da sua vida e na sua passagem pelo Vitória Guimarães acabou por defronta-la, em jogo a contar para a Taça de Portugal. Que sentimentos o invadiram nessa altura?

Eu tinha 23 anos, tinha saído de São João da Madeira e passado um ano ou dois a Sanjoanense calhou com o Vitória Guimarães, num jogo da Taça. E, fruto da minha inexperiência, porque era um jovem – e, por isso, compreendo muitas vezes o que vai na mente dos jogadores mais jovens –, nem conseguia dormir no estágio da equipa, em Espinho. A ansiedade era muita, vinha jogar à minha terra, perante a minha família, os meus amigos, os sócios da Sanjoanense… Não consegui dormir.

O nosso treinador era o Manuel José e tínhamos uma excelente equipa. Tanto que nesse ano acabámos o campeonato na quarta posição. Mas a ansiedade para esse jogo era tanta que o treinador acabou por me tirar ao intervalo. Eu estava nervoso, ansioso… Acabámos por ganhar 1-0, a três minutos do fim, mas de forma algo injusta, porque a Sanjoanense estava a justificar a ida a prolongamento. Mas esse foi um dia muito difícil para mim… Foi um dia com muita alegria, muita felicidade, mas no qual acabei por bloquear para o jogo.

Falando do presente do clube, a Sanjoanense tem tido um início de época inconstante em casa mas muito positivo nos jogos fora do seu estádio. Como avalia o percurso da equipa, até ao momento?

A Sanjoanense tem um dos melhores conjuntos de jogadores dos últimos 10/15 anos. É evidente que o plantel lacunas mas quero dar os parabéns à Sanjoanense e ao seu Departamento de Futebol por terem conseguido reunir, apesar de todas as dificuldades do clube, este lote de jogadores. E isso só acontece porque existem conhecimentos, know how, perspicácia e capacidade para aglutinar pessoas, com parcerias estabelecidas com empresários de sucesso que ajudam o clube e permitem que a Sanjoanense forme uma equipa como a que agora apresenta. Qualquer treinador fica contente se uma Direção lhe colocar um lote de jogadores como este à disposição e estou surpreendido pela capacidade que tiveram para o fazer.

Quanto aos resultados, a equipa demonstra alguma experiência e imaturidade, fruto da média de idades muito baixa, o que origina alguns erros normais, tendo em conta o contexto. Os treinadores têm agarrado bem a equipa mas esse é um processo lento, que demora tempo e obriga à consolidação de rotinas que permitam que os jogadores ganhem confiança e se libertem de alguma ansiedade que os tem acompanhado, principalmente nos jogos em casa, onde não temos conseguido ganhar apesar da muita superioridade demonstrada.

Mas convém salientar que, até ao momento, a Sanjoanense tem quatro jogos disputados fora de casa, três deles em relvado sintético, e venceu-os todos. E entre esses encontros está um contra o primeiro classificado da Série F (?) e outro contra a melhor equipa que vi jogar até agora, o Lusitano… Portanto, uma equipa que ganha quatro jogos seguidos fora de casa tem que ter muito valor, muita capacidade. Não me lembro de outra equipa da Sanjoanense que o tenha feito nos últimos anos… Agora há que transpor isso para os jogos em casa, onde a equipa tem oscilado. Mas a Sanjoanense tem feito uma excelente campanha na Taça de Portugal, também, e está no bom caminho. Tenho absoluta confiança nos treinadores, na Direção e principalmente nos miúdos, porque jogam muito. Quando deixarem para trás essa ansiedade e se libertarem um pouco, com o passar dos jogos, penso que poderemos ambicionar chegar aos dois primeiros lugares desta fase do campeonato.

Um dos destaques desta época tem sido, realmente, a campanha na Taça de Portugal, não só pelas duas vitórias mas pela forma como assegurou a passagem na última ronda, em Sintra. Enquanto conhecedor do contexto futebolístico nacional, sente a Taça como montra ideal para que o clube volte a ter destaque a nível nacional?

Sim e penso que já há uns anos que não conseguimos ter um trajeto tão bom na Taça de Portugal. O jogo contra o Sousense foi excelente e o de Sintra foi épico… E, lá está, a equipa, fruto dessa juventude de que falei, é capaz do oito e do oitenta. E nesse jogo contra o 1º Dezembro foram capazes do oitenta. Com nove jogadores e o Ronan improvisado na baliza ainda conseguiram ir buscar o resultado, a vitória.

Este jogo com a Académica é o ideal para o clube e para os jogadores. Dá montra. O foco da imprensa nacional está neste tipo de jogos e as pessoas da Sanjoanense merecem um jogo destes, para que possam desfrutar, tranquilos e serenos. O que vier por acréscimo será lucro e acredito que os jogadores e treinadores estão em condições de oferecer um grande espetáculo.

A vitória diante do 1º Dezembro saiu dos pés do Ruben, o seu filho. O que é que sentiu no momento em que percebeu a importância real daquele golo?

Eu tenho visto os jogos todos e agora ainda sofro mais… É o meu clube, sem qualquer hipocrisia, e tenho o meu filho lá. E o facto de ter sido ele a marcar ainda me deu mais satisfação. Já voltou a fazê-lo depois disso, curiosamente num pormenor em que não era muito bom mas tem evoluído, e isso é muito bom para ele, porque trabalha para a equipa mas também precisa de fazer golos. Isso está a dar-me uma satisfação enorme. Mas fico muito contente com as vitórias da equipa e, como disse, tenho sofrido bastante porque, independente de ser o Ruben ou outro colega a marcar, o que eu quero é que a Sanjoanense ganhe…

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Fotografia: ads.pt

Esse golo garantiu o acesso à Terceira Eliminatória e o sorteio ditou um Sanjoanense vs Académica, jogo entre dois históricos do futebol português que o Flávio representou. Que recordações guarda do tempo passado em Coimbra?

Antes do sorteio falei com pessoas amigas e disse que seria boa a vinda de um clube grande a São João da Madeira porque estamos a atravessar um momento difícil e todas as receitas são boas. Mas disse também que, caso não calhasse um clube grande, gostaria que fosse a Académica, por ter sido um dos três clubes que representei na Primeira Liga. E assim foi…

Normalmente diz-se que quem passa por Coimbra não esquece a cidade e isso é mesmo verdade. Passei três anos em Coimbra e só quem por lá passa é que sabe o que é a Briosa. Tive três anos espetaculares na Académica e foi de lá que me transferi para o Benfica, num negócio que deu algum brado.

A Académica representou muito para a minha carreira e é um clube que tem uma mística muito própria a nível nacional, por ser a equipa dos estudantes. Lembro-me, por exemplo, que quando íamos jogar a Faro o estádio enchia, porque os estudantes que estavam espalhados pelo país iam ver o jogo. E acho que, a pouco e pouco, a mística se vai mantendo. Tenho recordações fantásticas daquela altura e quando saiu o sorteio senti um enorme prazer e alívio porque no domingo vão defrontar-se dois dos meus grandes amores! É com prazer que vou ao estádio e tenho a certeza que vou receber muitos amigos da Académica, alguns que fazem parte da Direção e outros que, não o fazendo, vivem o clube de forma incrível. Deixei lá muitos amigos e tenho a certeza que no domingo terei oportunidade de os rever aqui, em São João da Madeira.

Fala da Académica com emoção e afetividade pouco comuns. Vê o clube como uma das grandes experiências da sua vida?

É uma grande experiência da minha vida! Eu cheguei a Coimbra vindo do Vitória Guimarães, uma equipa altamente profissional, e a Académica transmitia-nos outros valores, como a afetividade e o carinho. É um clube sui generis, é difícil explicar… E os três anos que passei lá foram uma experiência fantástica sob o ponto de vista humano. Posso dizer que na altura tudo fizeram para que terminasse lá o meu curso e faziam questão que os atletas fossem estudantes também. Fizeram tudo para que eu seguisse esse exemplo mas, infelizmente, acabei por não aceitar, mesmo tendo 8/9 colegas que jogavam e estudavam ao mesmo tempo. Até por isso tenho muitas saudades, mesmo muitas, do tempo em que joguei na Académica. Não é por acaso que procuro ir regularmente a Coimbra rever amizades que lá criei e é gratificante chegar à nova Sede da Académica e ver lá fotografias minhas expostas.

Como disse, chegou a assinar pelo Benfica, proveniente da Académica, mas pouco tempo depois regressou a Coimbra. Esse episódio fomentou o carinho especial que hoje tem pelo clube?

Era muito difícil chegar ao Benfica naquela altura, o clube tinha sempre planteis espetaculares e como eu jogava sempre a titular na Académica, tinha um enorme gosto em fazê-lo e era um dos meninos queridos, um mês ou dois depois de chegar ao Benfica, ao ver que não jogava, só tinha uma preocupação, que era regressar a Coimbra para voltar a viver todos os momentos que tinham ficado para trás. O FRÁ, a Queima das Fitas, a envolvência da cidade e da Briosa… Regressei, a receber menos do que recebia no Benfica, mas porque gostava mesmo de lá estar.

Muitos dos amigos de que falou há pouco são, ainda hoje, parte da estrutura diretiva da Académica. Já falou com alguém sobre o jogo que se avizinha?

Nesta altura ainda não mas tenho a certeza que vou falar. Como disse, alguns deles são dirigentes, outros não o são mas vivem o clube de forma fantástica e certamente que irei revê-los no próximo domingo.

Quanto ao presente da Académica, o início de campeonato não foi nada positivo e culminou com o afastamento de José Viterbo, com quem privou. Vê, neste mau começo, uma janela de oportunidade para que a Sanjoanense assuma o papel de “tomba gigantes”?

A Académica é uma equipa de Primeira Liga, composta por excelentes jogadores e apesar do mau início de campeonato, que culminou com a saída do meu grande amigo Viterbo, que fez um milagre ao salvar o clube da descida na época anterior, esta última vitória pode ter dado uma injeção de confiança à equipa que pode não ser boa para a Sanjoanense. Se a Académica chegasse a este jogo com derrotas acumuladas podia ser melhor para nós. Penso que agora a equipa está mais motivada, os jogadores estão mais moralizados e não vai ser fácil para nós. Mas, de outra forma, já não seria também.

No entanto, tenho a certeza que, se os jogadores da Sanjoanense jogarem libertos, serenos, tranquilos e desfrutarem do jogo, conseguindo aguentar os primeiros minutos sem sofrer qualquer golo, a Académica terá também, uma tarefa muito difícil.

É possível, neste contexto, ter preferência pessoal quanto ao vencedor?

Ah, quanto a isso não existem dúvidas. Os meus amigos da Académica que me desculpem mas no domingo quero que vença a Sanjoanense! Quero tudo do melhor para a Académica, vou desejar ardentemente que se mantenha na Primeira Liga mas domingo vou sofrer pela Sanjoanense.

Pela experiência enquanto jogador e treinador, como se prepara um encontro deste calibre?

Como já disse, reconheço muita competência à nossa equipa técnica e, depois da vitória diante do Lusitano, que foi muito importante porque permitiu à equipa colar-se aos primeiros lugares e recuperar muita confiança, eles sabem que os jogadores estarão tranquilos, serenos e motivados. A Sanjoanense não parte para este jogo como favorita. Se perdermos não será o fim do mundo mas se ganharmos conquistaremos mais um feito histórico para o clube, feito esse que pode catapultar a equipa para uma fase muito adiantada da competição, com a possibilidade de calharmos com um dos “três grandes”. Isso valorizará muito o clube, a equipa técnica e os jogadores. Este jogo vem na hora certa e, como disse, depois do jogo com o Lusitano, há que deixar os jogadores tranquilos porque a motivação já  será  natural.

Que menagem transmitiria aos jogadores na antevisão ao encontro?

Que desfrutem do jogo. É um jogo muito bonito, que será foco de atenção, mas durante o qual eles têm que fazer o seu trabalho, de forma serena, sem stress nem ansiedade. Só assim é que conseguirão fazer um grande jogo.